Por João Ijino[1]
Há pouco mais de duas semanas (22/8), em sessão esvaziada, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 133/2024. Na prática, a “PEC da Anistia”, como ficou conhecida a emenda constitucional 133/2024, concedeu perdão aos partidos políticos pelo descumprimento da aplicação dos percentuais mínimos financeiros para candidaturas de pessoas negras. De acordo com a legislação eleitoral, os partidos políticos são obrigados a aplicar, ao menos, 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha e do fundo partidário aos candidatos e candidatas pretos e pardos. A emenda cria ainda o Refis (Programa de Recuperação Judicial) dos partidos e reforça a imunidade tributária das agremiações partidárias.
Embora formalmente constitucional, posto que terá seguido o rito legislativo de aprovação, poder-se-ia arguir a inconstitucionalidade material da emenda perante a Corte Suprema. Foi o que fizeram a Rede Sustentabilidade e a Federação Nacional das Associações Quilombolas (Fenaq), que ingressaram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF. A ação será relatada pelo ministro Cristiano Zanin.
O que, aparentemente, escapa à classe política é que a peça legislativa aprovada contraria compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro em matéria de direitos humanos, a exemplo da Declaração de Durban, da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial e do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, apenas para citar alguns. Realizada em 2001, no “Ano Internacional de Mobilização contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata”, a Conferência de Durban, que teve a participação de 173 países, foi um marco na luta internacional pela equidade racial. A conferência teve repercussões práticas e impulsionou, no Brasil, políticas de reparação hoje consolidadas, como a lei de cotas no ensino público e, posteriormente, na administração pública federal. Ambas políticas tiveram sua constitucionalidade referendada pelo Supremo, nos termos da ADPF 186 e da ADC 41 respectivamente.
Na Declaração de Durban, os países signatários, dentre eles o Brasil, reconhecem que “cada pessoa está atrelada a uma ordem social e internacional na qual todos os direitos humanos podem ser realizados por todos, sem qualquer discriminação”. No documento, os países reconhecem ainda que “a igualdade de oportunidades real para todos […] é fundamental para a erradicação do racismo…”.
Fruto de intensos debates e negociações, a Declaração debruçou-se sobre a questão da representatividade racial na política, ao defender que os Estados desenvolvam estratégias para o “acesso mais efetivo (da população negra) às instituições políticas, com medidas que visem “corrigir as condições que impedem o gozo dos direitos e a introdução de medidas especiais para incentivar a participação igualitária de todos os grupos raciais […], colocando a todos em igualdade de condições”, além de medidas “para o alcance de representação adequada nas instituições educacionais, de moradia, nos partidos políticos, nos parlamentos…”.
A Declaração de Durban reconhece ainda “o papel-chave que os líderes políticos, assim como os partidos políticos podem e devem ter no combate ao racismo” e incentiva “os partidos políticos a darem passos concretos na promoção da solidariedade, da tolerância e do respeito”. O instrumento legal atesta “o papel primordial dos Parlamentos na luta contra o racismo e a discriminação racial…” e exorta os parlamentos nacionais a “adotar legislação adequada, supervisionando sua implementação e alocando os recursos financeiros indispensáveis” – justamente o que prevê a legislação eleitoral ao estabelecer percentuais mínimos de recursos e vagas para mulheres e homens e mulheres negros na composição de chapas eleitorais nas eleições proporcionais.
O sistema eleitoral de cotas de gênero e raça dialoga diretamente com o Plano de Ação de Durban, que, entre outros dispositivos, “insta os Estados a trabalharem para assegurar que seus sistemas políticos e legais reflitam a diversidade multicultural dentro de suas sociedades”.
A Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, em seu artigo V, é clara ao enunciar que “os Estados Partes comprometem-se a proibir e a eliminar a discriminação racial sob todas as suas formas e a garantir o direito de cada um à igualdade perante a lei”, sobretudo no gozo dos “direitos políticos, especialmente o de participar de eleições – votando e sendo votado – através de sufrágio universal e igualitário, direito de tomar parte no governo assim como na direção dos assuntos públicos em todos os escalões e direito de ter acesso em igualdade de condições às funções públicas”. Os poucos exemplos ora trazidos demonstram o descompasso da “PEC da anistia” em relação aos anseios da sociedade brasileira e sua inadequação ao direito internacional. A emenda aprovada pelo Congresso limita a fruição plena dos direitos políticos da população afrodescendente brasileira, enfraquece ainda mais a confiança popular no sistema político, nutre a falta de diversidade e desestimula a renovação política, que necessariamente passa pela maior participação de pessoas negras na vida pública. In summa, o insulamento do ecossistema político-partidário, que se mostra recalcitrante e cioso de seus privilégios, tende a municiar a descrença da população na política. Mais uma vez, quem perde é a democracia.
[1] João Ijino é diplomata de carreira. As opiniões enunciadas neste artigo são inteiramente pessoais e não refletem necessariamente a visão do Ministério das Relações Exteriores.